Às vezes pensamos que o
que separa um jovem cristão de um fariseu é uma grande distância. Quando eu era
mais jovem, durante a revolução dos costumes ocorrida na década de 60, pensava
que havia duas coisas que me separavam de um fariseu. A primeira era o próprio
fato de eu ser jovem e liberado. A segunda, o fato de eu pertencer àquela
geração que transtornou os costumes moralistas ensinados durante séculos. No
entanto, mesmo antes de eu encontrar Jesus, lá mesmo onde eu estava, em meio
aos hippies e liberados rapazes e moças daquela geração, a hipocrisia podia ser
encontrada. Depois que me tornei cristão, logo percebi que o farisaísmo não tem
idade: ele se esconde em qualquer lugar, e, muitas vezes, com mais facilidade
ainda sob as vestimentas religiosas.
Jesus advertiu os seus
discípulos de que a condenação do fariseu não tinha paralelo entre os demais
pecadores daqueles dias. As prostitutas, os publicanos, os pervertidos e os
demais párias daquela sociedade – com os quais Jesus estava em permanente
contato – jamais receberam tão intensas ameaças de severo juízo quanto os
fariseus. Com essa afirmação eu não estou dizendo que eles não eram também
passíveis de juízo, pelos seus próprios pecados. O que estou dizendo é que para
Jesus, os pecados deles eram pecados mais “verdadeiros”. Nem por isso eles
deixaram de estar sob o crivo do juízo de Deus; porém, com muito menor rigor,
nos graus da condenação, do que o que estava prometido para o falso religioso.
Jesus disse que “por fora”
os fariseus eram perfeitos; todavia, o interior era um lixo. O Senhor disse que
era como alguém que só lava o prato de comida por fora e que é capaz de comer
no mesmo prato sujo, a vida toda (você pode se imaginar comendo no mesmo prato
sujo a vida inteira? Você pode se imaginar bebendo água num copo sujo por toda
a sua vida?). E ainda: que eles eram como sepulcros pintados de branco –
mostrando beleza enquanto a podridão acontecia do “lado de dentro”. Isso
significa que é bastante possível que as pessoas se escondam sob as vestes religiosas
para mascararem seus reais valores interiores. Muita gente, e mesmo jovens, se
esconde sob o disfarce religioso a fim de pecar com mais “segurança”.
Psicologicamente falando,
esse fenômeno de se esconder embaixo das vestes religiosas para pecar com mais
profundidade não é totalmente estranho. Aliás, o melhor lugar para esconder
nossa própria maldade é a igreja. Nós que somos membros da igreja devemos
sempre ter a coragem de perguntar o que significa nossa presença no ajuntamento
do povo de Deus. Isso porque na igreja há sempre dois tipos de pessoas: aquelas
que escondem sua própria maldade e dureza interior sob o disfarce da fé e da
moralidade, e aquelas que se conhecem como pecadoras e que escondem a si mesmas
sob o sangue de Jesus. O primeiro grupo esconde a sua maldade. O segundo grupo
esconde a si mesmo enquanto confessa a sua própria culpa.
A questão é: como pode
isso se desenvolver? Eu ouso afirmar que o problema está nos nossos padrões de
espiritualidade, os quais muitas vezes são falsos. Por isso, quando alguém está
tentado a pecar, está também, automaticamente, tentado a esconder sua tentação
sob o disfarce do radicalismo comportamental. Dessa forma, quase sempre os
cristãos, antes de caírem numa tentação, caem em uma outra: a tentação de aparentarem
uma vida que está para além da possibilidade do pecado. Obviamente ninguém fica
mais vulnerável ao pecado do que aquele que não admite sua própria
vulnerabilidade.
Acontece que isso é um
círculo vicioso. Primeiro, a pessoa é tentada. Depois ela sente a obrigação de
mascarar essa realidade. Ora, quando isso acontece essa pessoa está se
condicionando psicologicamente para se tornar um hipócrita.
E que é o hipócrita, senão
aquele que não assume o que é e aquilo contra o que luta? E quem consegue viver
a vida inteira escondendo de si mesmo e dos irmãos as suas fraquezas sem que,
de um modo ou de outro, acabe caindo diante daquilo que ele nega como sendo sua
própria sedução? Daí, a inferência de
que quanto mais “espiritual” for o ajuntamento cristão, mais propício ao pecado
ele será. Justamente aqui nós estamos diante de um grande paradoxo cristão:
bem-aventurados sejam os fracos, os mansos e aqueles que são capazes de chorar.
Somente depois é que se fala dos limpos de coração. Só é limpo de coração quem
limpa o coração diante de Deus e dos irmãos, mediante frequentes confissões de
carência humana. Não existe tal pessoa limpa de coração que seja solitária e
incapaz de constantes revisões de vida. Não existe ninguém permanentemente
limpo de coração. Existem apenas aqueles que se deixam limpar mediante a
confissão e a sinceridade de uma vida que não tem medo de ser suficientemente
humana para confessar tendências em vez de assumir um outro lado de sua
humanidade: o pervertido lado de sua humanidade-inumana, que prefere esconder
tendências e viver pecados.
Quando esse tipo de
comportamento se desenvolve, o que acontece é que a tendência da pessoa é
assumir cada vez mais a “santidade” publicamente, a fim de compensar suas
incoerências vividas nos bastidores. Daí que pessoalmente eu me impressiono
muito mal com pessoas cuja ênfase na santidade me soe um tanto extravagante.
Para mim, na maioria das vezes esse comportamento esconde um conflito interior
justamente naquela área que se tornou um obsessivo discurso. Pessoas
equilibradas tendem a falar de tudo, ao invés de se tornarem obcecadas por um
discurso só. E mesmo quando alguém tem uma ênfase pessoal e particular na vida,
se essa pessoa é saudável tal ênfase será vivida sem nenhum espírito de
cobrança para com aqueles que não conseguem viver a vida com o mesmo peso,
naquela área. Ora, tudo isso me leva a afirmar que muito daquilo que temos
chamado de “consagração” na vida cristã possivelmente não passe de um atestado
de nossa própria conflitividade não confessada e não assumida.
O que complica bastante a
situação daquele que assim se comporta é o fato de que quando alguém vive com
tal capacidade de se disfarçar, isso pode significar que ela está desenvolvendo
uma profunda maldade em sua própria alma: a maldade de ser tão mal, que tenta
enganar a todos sob a máscara da bondade. Vale lembrar que para Jesus esse era
o mal maior na vida, o mal dos fariseus, o mal dos religiosos, o mal dos falsos
profetas, daqueles que se mostram ovelhas mas que de fato são lobos.
Nós que somos pessoas da
igreja precisamos urgentemente aprender que a maior mentira que se comete na
vida não é aquela que se diz, mas aquela com a qual se vive. Precisamos
recuperar o senso de “intimidade” e de “interioridade” das verdades do
Evangelho. Temos que pedir a Deus que nos liberte das falsas e malignas noções
de espiritualidade. É urgente que reassumamos nossa herança Reformada, a qual
afirma nossa impossibilidade inerente para a bondade absoluta, e nos remete
humildes e dependentes para a graça de Deus. Caso contrário, corremos o risco
de nos tornarmos pessoas muito más. Aliás, a História está repleta de
testemunhos dessa nossa capacidade de nos tornarmos mais maus do que os mais
maus.
Este mal vem justamente da
nossa relação com o Sagrado. Nada é mais intenso que aquilo que é divino.
Quando alguém mantém uma sadia relação com o Sagrado, tal pessoa torna-se santa
e bonita. De outro lado, quando a relação com o Sagrado acontece desde uma
perspectiva de orgulho, autossuficiência e hipocrisia, então nada faz adoecer mais
do que essa versão religiosa da maldade. Daí que Lúcifer tornou-se mau na exata
proporção de sua anterior virtude. Assim, onde abundou a graça, superabundou o
pecado. Nós temos afirmado esse princípio apenas na dimensão paulina: “onde
abundou o pecado superabundou a graça”. Todavia, Pedro coloca a mesma verdade
desde uma outra referência histórica: “o seu estado se torna pior do que
primeiro”. Ou ainda: “melhor lhes fora jamais terem conhecido o caminho da
verdade do que, após o terem conhecido, o abandonarem”.
Certa vez C. S. Lewis
disse que o pior diabo é aquele que nós pensamos que não existe. Eu ouso,
respeitosamente, contrariar esse que foi um dos maiores pensadores cristãos de
todos os tempos, para dizer que, para mim, o pior diabo é aquele ao qual nós
nos “acostumamos”. Isso porque quando alguém não sabe ou não crê que o diabo
existe, está menos exposto à total força do diabo, pelo simples fato de
“sinceramente” não crer ou não admitir a existência dele. Há um grande poder
espiritual na verdade, mesmo que aquele que a demonstre seja um ateu. Todavia,
quando alguém sabe que o mal existe como mal real e objetivo, mas a despeito
disso vive em cínica indiferença para com esse poder, tal pessoa não se torna
apenas vulnerável ao mal, mas se torna, ela mesma, parte da própria realidade
do mal. Ninguém é mais maligno do que aquele que consegue se tornar indiferente
ao poder do mal enquanto admite a sua existência. Gente assim vive uma espécie
de “crente-descrença” no poder do mal. Ora, é simples inferir que é mais fácil
achar gente assim domingo de manhã na igreja, do que num laboratório de ateus
confessos. É mais fácil achar esses jovens cantando com as mãos levantadas num
culto animado, do que nas praças. Aqueles que estão vivendo sua alienação de
Deus e do diabo muitas vezes fazem isso em absoluta ignorância; mas muitos dos
que lotam nossos templos cristãos e nossas reuniões são do tipo de gente que
consegue “levantar as mãos ao Senhor” e depois, mesmo contra a Palavra do
Senhor que eles conhecem, ser capaz de levar uma irmãzinha, companheira de
louvor, “para a cama”.
Eu sei que para muita
gente as afirmações que tenho feito podem soar excessivamente fortes. No
entanto, não tenho o menor temor de estar equivocado a esse respeito. Tenho a
própria história bíblica e a história da Igreja para confirmarem tais
declarações. E além disso, é só olhar em volta para se constatar que há uma
grande abundância de testemunhos contemporâneos corroborando o que estou
dizendo.
Tudo o que eu disse até
aqui tem a finalidade de estimular você, que deseja andar com Jesus, a
coerentemente tomar a cruz e segui-lo. Não é fácil assumir as dores que vêm
como resultado de uma vida sincera. É duro, o preço da verdade. Mas é a única
forma de andar com Deus. É preciso ter “coragem de ser diferente”. Não
diferente apenas mediante uma postura de “fachada”. É preciso ser diferente
desde o coração. Só assim se edifica um “compromisso capaz de fazer diferença”.
Faz quinze anos que eu venho andando
com Jesus e fazendo todo o possível para, no dia a dia, não me esquecer dessas
verdades a respeito das quais acabei de escrever. Mas uma coisa tem me ajudado
muito, nesses anos: a lembrança de que eu não tenho que ser, para ninguém,
qualquer coisa além daquilo que Deus sabe que eu sou. Isso me ajuda a não ter
medo de ser gente. Todavia, essa mesma verdade me ajuda a ser aquilo que, na
graça de Deus, eu devo ser na minha “identificação gradual na História”. E
quando me sinto tentado a pensar diferente, eu me lembro que os felizes, do
ponto de vista de Jesus, são os que têm coragem de chorar, os mansos, os que
têm fome e sede de justiça – ou seja, os que querem mais –, os misericordiosos,
os que se purificam na graça de Deus, os que vivem para construir pontes entre
os separados pelo ódio, e os que assumem a perseguição como o resultado mais
natural da sua relação com Jesus, aquele que por viver tão diferentemente dos
padrões vigentes, sofreu o preço de uma existência capaz de ser radicalmente
relevante; aquele que mostrava seu brilho pessoal a poucos (transfiguração),
mas que não teve vergonha de mostrar sua dor e verdade humanas a todos, na
cruz.
Somente vivendo com essa
compreensão evitaremos a terrível realidade de nos tornarmos hoje os fariseus
que Jesus repudiou ontem. Como você viu, não há muita distância entre um jovem
e um fariseu bem apessoado. Cabe a você jamais chegar lá.
Rev. Caio Fábio D’Araújo Filho
Contribuição de Jefferson Santos
Soares e Néjea Madruga
*Texto publicado na revista do
congresso Geração 90 (MPC) – Brasília, 1990.
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