sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Peixes grandes e pequenos



Por Ed René Kivitz

Na esteira do pensamento paralelo de Dostoiévski, que afirma que, se Deus não existe, tudo é permitido, podemos dizer também que a pluralidade de deuses conspira contra a unidade do ser. A ausência de Deus tira do universo e da humanidade seu fundamento moral. Caso tudo quanto exista seja apenas e tão somente a matéria, a substância originária e permanente de toda a realidade, podemos viver como os peixes grandes que devoram os peixes pequenos. Quem deseja tomar a natureza como padrão para a organização social não tem razões para dar de comer a quem tem fome. O popular já expressou sua sabedoria egoísta: quanto menos somos, melhor passamos. Deixem morrer os pobres, que desapareçam as populações da periferia do mundo, assim teremos mais água, mais petróleo, mais condições de sustentabilidade para o mundo, diminuído o número de seu maior predador, a saber, o bicho homem.
Apenas a nocão de Deus como ser moral oferece à humanidade o fundamento da solidariedade indiscriminada. Essa é uma das grandezas do relato bíblico da criação: em Adão, todos os seres humanos são um, pois sobre todos repousa a dignidade divina. Jesus ensinou que assim como todas as moedas são identificadas pela imagem de César, também todos os seres humanos são identificados pela imago Dei.
O fundamento ético do universo e da humanidade repousa no amor, expressão do ser divino que a tudo dá origem. Isso implica necessariamente a compreensão de que a correlação que liga o homem a seu semelhante se realiza na compreensão de uma correlação superior, a que liga o homem a Deus e Deus ao homem, cuja síntese se revela no Cristo, Deus feito homem, único mediador entre Deus e o homens.
Essas são algumas razões porque, assim como a negação de Deus, a pluralidade de deuses inviabiliza a unidade do ser. Sendo verdadeiro que a relação do homem com Deus se manifesta na relação do homem com seu próximo, é imprescindível a pergunta a respeito do caráter desse Deus, que normatiza a relação entre os homens. Muitos deuses, muitas éticas. Muitas éticas equivale a éticas em conflito em busca de hegemonia. Como os deuses não brigam entre si, brigam seus representantes (ou se preferir, os deuses brigam entre si através de seus pretensos representantes). O monoteísmo cristão, que afirma a unidade de três pessoas numa única divindade, diz que Deus é amor, a comunhão harmônica e perfeita do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Qualquer Deus vestido com roupas diversas do amor é um ídolo, um falso Deus, um demônio. A dedução óbvia é que muitos deuses são artifícios para o surgimento de um único e outro deus que pretende rivalizar com o Deus vivo e verdadeiro. Esse outro deus atende pelo nome de ego humano, que, no caminho inverso do amor, mergulha para dentro de si na pretensão estúpida de afirmar a si mesmo como fundamento do universo e centro do mundo. A idolatria e a descrença, isto é, a afirmação de muitos deuses e a afirmação de Deus nenhum, são duas faces de uma mesma moeda: a absolutização do ego humano.
Uma vez que somente na relação com seu semelhante – com quem é um – o ser humano se realiza, e que somente Deus oferece o fundamento para a unidade da humanidade, toda negação do amor, que equivale ao afastamento do outro, equivale também à desintegração do ser. Em termos concretos, Deus nenhum e muitos deuses são uma e a mesma coisa.

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